domingo, 21 de agosto de 2011

PORTO VELHO E SUAS HISTÓRIAS

Meu bravo leitor. Deixo com você um texto dentro de um Projeto que tive chamado "Porto Velho: Crônicas de um Bairro". O texto é de 2002 e foi publicado no zine O Idiota que mantive na minha época de UFF.

Boa Leitura.

O Samba Daqui

Era mais um fim de semana. E fim de semana era festa no Porto Velho. Afinal, no sábado seria escolhido o samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Bohemios da Madama. O bairro inteiro vestia as cores verde e branco da Escola; surdos, repeniques, cuícas e toda a família percussiva do samba já estavam prontos para receber a imensa multidão que costumeiramente se espremia na quadra do que é a maior expressão da cultura popular brasileira.

O Lan não conheceu a Marinalva
 Sempre foi um privilégio saber que a porta da sala de minha casa ficava de frente a maior expressão da cultura popular brasileira... As palavras que desfilam nessas linhas têm muito do testemunho de um sobrado, que fica à Rua Antônio Gonçalves, 99, palco de minha primeira infância à sombra de dois tamarindeiros, projetando em minhas lembranças a imagem lúdica do jogo de bola de gude e dos primeiros movimentos com a pelota de couro surrada no terreno de dona Guiomar. Uma lente de cores suaves na tela tridimensional do tempo.

Eu era muito pequeno, e já um moleque ansioso em atropelar o inexorável: o tempo de todas as coisas e todas as coisas do tempo. A compreensão de mundo na infância é mais pelo fantástico que por bases racionais de apreensão da realidade. Daí a enorme capacidade que a criança tem em se intrigar com tudo que vê, única coisa em essência que vamos perdendo quando crescemos. A disciplina da convivência humana, sem se dar conta, extermina a possibilidade de formação autônoma do indivíduo, forçando-nos a entregar assinada uma espécie de promissória com data de resgate indeterminada. A velada tragédia do mundo moderno.

É, mas uma mulher me intrigava. Obviamente que a chamarei de Marinalva, justamente por este não ser o seu verdadeiro nome. Marinalva encantava a todos. Havia uma coisa nela que no fundo todos querem ter: a magia que fazia todos quererem comê-la. Coitada, mal podia andar na rua. Só um aceno protocolar não era suficiente. Generosamente, deixava de lado o seu andar firme e olhos corajosamente centrados adiante a oferecer àqueles homens o toque em sua pele, o seu sorriso, como quem, caridosamente, faz a um despossuído uma filantropia.

Ela não ligava muito para os murmurinhos das calçadas, das mulheres gordas da santa inquisição do matrimônio, aliás, acreditava mui sinceramente em sua função. Ela era o Belo, e todas as dores e prazeres nele embutidos deveriam ser compartilhados e fraternos.

Ela não era de bater perna à toa na rua, não. Trabalhava, e muito, como uma das melhores, senão a melhor, manicura do bairro. A clientela que não é muito afeita às artes da vaidade garantia o seu numerário, com pé, mão e algumas prendas, aceitas de bom grado, por beijos e abraços perfumados, mas que a bem da verdade e do esclarecimento acerca de qualquer malversação de seu caráter, não eram acompanhadas de quaisquer ordinárias intenções; assim ela marotamente bem fazia parecer. Mas naquele sábado, o expediente acabaria mais cedo, mesmo sob protestos efusivos mas não muito eloquentes da cafajestada.

É que a moça fazia do samba uma profissão de fé. A sua devoção à Escola, mesmo nas horas preliminares ao grande êxtase do batuque, beirava o ritualístico. O instante solitário do seu quarto testemunhava a habilidade com que usava os apetrechos de realce à beleza feminina; o óleo, que delicadamente untava e reluzia em seu corpo instigante de cor brasileira junto às várias  matizes de purpurina, combinando, lascivamente, com um pequeno conjunto de duas peças e plumas nos ombros. Os pés, cuidadosamente abrigados num par de calçados que só usa quem tem talento. Depois de finalizada as orações em seu particular altar de madeira espelhado, chegara a hora de vestir o seu sobretudo tropical e caminhar pelas ruas lotadas e exaustas pela espera proporcionada pelos seus caprichos.

Naquele momento Marinalva deixava de ser uma pessoa comum para se transformar em entidade. Sim, uma entidade que tinha em si todas as representações da existência humana. A fantasia sempre foi melhor que a realidade. Ela transpirava o samba. Ela era o samba. E as ruas, com suas multidões famintas, viam nela o sentido e a profunda expressão do ato final de suas vidas: estarem ali e vê-la passar era eternizar este pequeno-grande momento.

Marinalva passava, soberana e onipresente, nos paralelepípedos da Júlio Reis. O gingado do seu corpo era a simetria perfeita no vácuo da ação da gravidade e o omisso chão, na deferência da marcação de um surdo em um tempo que insistia em não passar.

Dobrara a esquina da Quadra que pacientemente a esperava com a fina flor da sociedade gonçalense, da contravenção e de outros não classificados. Foi recebida pelo patrono da Escola - ora, pois! - e por alguns senhores do mais fino trato do popular jogo do bicho que complementavam a diretoria. Sambistas de profissão e membros da bateria por ela amadrinhada solfejantes, inclusive, um desconhecido cavaquinista que mais tarde se tornaria prefeito de São Gonçalo pelo PDT.

Depois de estendido o rubro tapete das celebridades, Marinalva pôde, finalmente, adentrar em seu santuário pagão sob gritos entusiasmados e a saudação dos tamborins. Tirou o sobretudo e, por mais uma vez, enobreceu o Porto Velho.

***

Agora, fique com o Gilber T:



            

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