domingo, 25 de setembro de 2011

EGOÍSMOS E ALTRUÍSMOS: AS LIÇÕES DO HUMANISMO CRISTÃO E O ENGAJAMENTO DOS INTELECTUAIS

Leitor, tu és a minha preciosidade. Estou revigorado neste domingo cinzento após ter a orgasmática experiência de ler o Mauro Santayana via Conversa Afiada (vou assinar o JB Online só por causa do Mauro).

Neste post está a seiva da vida e do seguir adiante num mundo em que a trapaça e o cinismo seguiram a mesma sofisticação da ciência moderna e contemporânea.

Depois de assistir o [quase] triunfo do pós-modernismo e sofrer com a desesperança e impotência frente ao mundo de mesquinharia que se desenhava para os meus filhos, mesmo assim, continuei firme nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade tal como nos apresentaram os franceses naquela primavera do século XVIII, espírito materializado na Enciclopédia, obra revolucionária que deu à razão humana autonomia e uma outra - e definitiva - concepção de Justiça.

Bom, emocionado e, repito, revigorado, deixo vocês com o Santayana.

GUERNICA, PABLO PICASSO: Líbia, Palestina, Somália, periferias do Brasil...



Em busca da razão perdida (2)


por Mauro Santayana

As grandes revoluções humanas não surgem espontaneamente. Elas, de certa forma, existem como possibilidade desde o início da História, mas são contidas pelas forças reacionárias. As idéias que as suscitam permanecem latentes, na obra de um ou outro pensador, seja nos ensaios, no teatro, nas narrativas épicas ou na poesia. Em alguns momentos, ganham força, mediante a discussão e o debate, e triunfam, mesmo que, algumas vezes, de forma efêmera.

As idéias, sem embargo de sua energia própria, dependem da ação. Os intelectuais, dizia, sem muita justiça, um dos precursores do Iluminismo, Erasmo de Rotterdam, são naturalmente medrosos. Isso só é válido para uma minoria, e de menor dimensão. A regra tem sido outra. Foram numerosos os homens de pensamento que tombaram em pleno combate, nas prisões ou nas terríveis condições da clandestinidade. Sem ir longe no passado, o século 20 foi exemplar nessa necessidade da inteligência em se fazer ação, como ocorreu na  na memorável resistência contra os nazistas, os fascistas e os franquistas – e na luta pela autodeterminação dos povos contra o totalitarismo imperialista. A política é a práxis da razão, e, sem ela, o pensamento permanece encapsulado na teoria, ou, seja, na contemplação.

O grande motor do século 19, o do fulgor do Iluminismo, foi L’Enciclopédie, Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers. Tratou-se de uma empresa, que nasceu com o interesse comercial de editores franceses – chefiados pelo maior deles, na época, Le Breton – empenhados na tradução da Cyclopaedia, dicionário universal inglês de Ephraim Chambers. Le Breton convidou D’Alembert e Diderot para a tarefa. Ambos entenderam que não bastava a tradução de um dicionário que, circulando desde 1728, já se encontrava perempto, e se limitava a uma erudição de natureza clássica, distanciada das inquietações práticas de 1747. Se o dicionário de Chambers tratava das artes e das ciências, Diderot acrescentou, para a sua enciclopédia,  os verbetes sobre os ofícios profissionais. Dedicou grande parte às ilustrações, que, sobretudo no caso dos ofícios, contribuíram para que a obra servisse como  manual de instruções.

Perseguida pela Igreja, uma vez que era essencialmente materialista, e incluída no Índex;   mal vista pela monarquia, por reivindicar as liberdades políticas, a Enciclopédia passou por inúmeras dificuldades e chegou a ser proibida. Diderot foi preso por algum tempo, D’Alembert desistiu de ser o co-editor, a partir do volume oitavo, e os últimos tomos foram impressos e distribuídos clandestinamente. O custo era altíssimo. Quando relembramos que a composição, tipo por tipo, era manual, e as chapas, armadas uma a uma, em operação demorada, podemos imaginar o dinheiro necessário apenas para o trabalho tipográfico. Mais de dois mil gráficos trabalharam durante os vinte e um anos de edição, transcorridos entre o primeiro e o último dos 28  volumes, 11 deles só de ilustrações.

A Enciclopédia foi empreendimento revolucionário, e disso Diderot tinha plena consciência. A publicação serviu para derrubar os pilares do poder feudal de uma nobreza ociosa e parasitária, que consumia a maior parte dos recursos obtidos com o trabalho dos franceses; serviu como fermento da Revolução Francesa e a derrocada da monarquia; combateu a Igreja, que, sócia privilegiada da opressão e monitora do pensamento, ameaçava os intelectuais com os dogmas e mantinha os néscios submissos, mediante a ameaça do inferno. Como as luzes vinham de várias fontes, Diderot escolheu para o subtítulo da obra a trilogia do inglês Francis Bacon,  que assim resumia as operações da mente: Memória, Razão e Imaginação.

Diderot foi mais do que seu diretor intelectual. Coube-lhe buscar os subscritores – o que representava para cada um deles a aplicação de uma pequena fortuna – entre os ricos mais esclarecidos, os pioneiros da indústria e do comércio e alguns banqueiros, como o mais eminente financista de Paris, Jacques Necker, que viria a ser a figura chave na Queda da Bastilha. Durante muito tempo, os enciclopedistas foram acolhidos no salão de Madame Necker, onde as novas idéias eram livremente debatidas.

O autor de “A Religiosa” agiu, ao mesmo tempo, como pensador, militante político e ativo empreendedor. Usando recursos que hoje encontramos na internet, como a remissão dos assuntos a outros verbetes, a inclusão das fontes de informação e referências bibliográficas, o que hoje chamamos de hiperlink. O texto incitava à ampliação crítica da informação, com o fantástico resultado que a História registra. E a empreitada fascinou todos os que a ela se associaram. O caso mais notável desse empenho foi o de Louis de Jacourt, um intelectual muito rico e de grande saber, que se formara em teologia, em Genebra, ciências naturais em Cambridge e medicina, em Leiden, na Holanda. Jacourt, sozinho, redigiu um quarto de todos os verbetes da Enciclopédia, sem cobrar um centavo pelo seu trabalho. Ao contrário, contratou vários assessores, que o ajudaram na exaustiva pesquisa daqueles tempos, e lhes pagou com seu próprio dinheiro.

Mesmo quando sua distribuição teve que ser clandestina, a Enciclopédia era discutida em todos os salões. Suas idéias estimularam o aparecimento de novos pensadores, que se somaras à elite da razão daquele tempo, formada por homens muitos deles nobres, como foram como Montesquieu, Grimm e Holbach. Eles se somaram a livres pensadores, como Voltaire, D’Alembert, Condorcet, Daubeton, Rousseau, Turgot e Quesnay, e a mulheres como Mme. D’Epinay, Sophie Volland, Mme Necker – e a notável proteção financeira a Diderot, de Catarina, a imperatriz da Rússia, para abrir o caminho do século seguinte.


Em busca da razão perdida (3)

O Iluminismo conduziu o mundo, durante o século 19 e a maior parte do século 20. A oposição que sofreu, no início dos oitocentos, com o Romantismo, foi débil, e só se manifestou de forma mais forte nas artes, sobretudo na literatura. Hegel e Marx, nas  idéias sociais, ou seja, políticas, são dois dos maiores frutos do século 18. Um se seguiu ao outro, e de seu pensamento surgiram os grandes movimentos revolucionários do século passado. Apesar disso, os resultados mais espetaculares das luzes parecem ter ocorrido na ciência e na tecnologia.



O espírito do mundo moderno é o da ruptura de todos os limites, na investigação do cosmos, na velocidade das comunicações e dos transportes,  na duração da vida.

Galileu tem uma frase inquietante: muita prudência, muitas vezes, quer dizer muita loucura. A razão, sendo o uso da mente para a construção da autonomia, já representa, em si mesma, uma violação da natureza instintiva da espécie: talvez nessa intuição, Chesterton tenha afirmado que louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão – o que significa entender que a aparente loucura pode também significar muita prudência.

No que se refere à política – que é a mais necessária das atividades humanas – o século passado foi o da exacerbação de um confronto milenar, que está nas glândulas da espécie, e que constitui o eixo das civilizações: o do egoísmo contra o altruísmo, dos ricos contra os pobres, dos fortes contra os débeis. É assim que poderemos ver em São Francisco de Assis a constatação de Chesterton – de resto um de seus grandes devotos – de que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não havia outra forma para que a sociedade de Assis do século 13 pudesse ver a conduta do jovem Bernardone, ao renunciar à vida confortável que a riqueza lhe permitia, romper com o pai, e lhe devolver as roupas luxuosas que vestia e, com o manto pobre de monge que o bispo de Assis lhe deu para cobrir a nudez, partir para outros atos de aparente loucura, nos quais se escondia a mais pura razão. No século 20 tivemos testemunhos desta conduta, tida como insana, na solidariedade radical, em nome do humanismo – que é sempre cristão, ainda que se identifique como agnóstico ou ateu- e tanto mais cristão quanto menos acredite na recompensa eterna.

Foi assim que tivemos, entre outros, o forte testemunho de Simone Weil, nascida judia, convertida ao marxismo e, em seguida ao cristianismo, e que ao Vaticano conviria mais fazê-la beata e mártir do que conferir santidade ao espanhol Balaguer. Simone abandonou, ainda menina, as comodidades da família, viveu entre os oprimidos, quis participar da luta na Espanha, um acidente a excluiu da atividade revolucionária, e sua renúncia a viver melhor do que viviam os mais pobres a levou à morte prematura, aos 34 anos, com tuberculose. São loucos, como Francisco e Simone, e muitíssimos outros, anônimos, que, no decorrer da História, perdem tudo, menos a razão.

O Iluminismo, que significara um outro salto da razão, não só trouxe  os movimentos de solidariedade, como não conseguiu impedir  a evolução industrial, graças à inteligência técnica e a ascensão da burguesia capitalista, e a exacerbação do imperialismo britânico e do colonialismo europeu, e a submissão da maioria da população do mundo aos opressores. Em nome de equivocada interpretação biológica, surgiu o mito da superioridade racial, e levou à estupidez do fascismo e do nacional-socialismo, com as duas grandes guerras mundiais, os milhões de mortos, e os conflitos continuados, sempre conduzidos pelos mais fortes contra os mais débeis. Entre a invasão da Etiópia pela Itália, em 1935,  e recente intervenção militar na Líbia pelos países europeus, não há diferença essencial: é a arrogância dos que se acham superiores e que, por tal razão, se sentem com o direito aos bens naturais do mundo, sobretudo as fontes de energia, como o petróleo.

A luta contra o totalitarismo dos anos 30 convocou os intelectuais do mundo inteiro, a partir da Guerra Civil da Espanha. O engajamento da inteligência ainda continuou, na Resistência contra os nazistas e, ainda mais dura, contra os  capitulacionistas e traidores, como ocorreu na França, nas lutas contra os golpes militares na América Latina, no combate aos crimes cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã, no combate contra o novo racismo europeu. Embora muitos ainda permaneçam nas trincheiras da razão, o novo liberalismo dos anos oitenta,  conseguiu encabrestar a inteligência e afasta-la das preocupações políticas. É assim que se explica que a França de Clemenceau e Leon Blum, de De Gaulle e Mitterrand, esteja hoje entregue ao pigmeu Sarkozy, e que os Estados Unidos de Roosevelt e Eisenhower, depois da tragédia dos Bush, assista à erosão veloz da grande esperança que foi Obama. Lembre-se a Espanha, condenada a se entregar novamente à direita, saudosista do franquismo, depois da claudicação de Zapatero. Não falemos na Itália, governada por um bufão, e, ainda assim, com a petulância de nos dar lições morais e recorrer ao Tribunal de Haia contra o exercício da soberania brasileira.

Enfim, o mundo, sendo sempre o mesmo, piora – e reclama nova articulação da inteligência para a restauração do compromisso da espécie humana com sua própria  sobrevivência, que os materialistas atribuem à razão, e os cristãos radicais identificam na santa loucura  do amor solidário, como o do Poverello de Assis.


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