sábado, 24 de setembro de 2011

CINEMA: VOCÊ NÃO ESCOLHE, É ESCOLHIDO

Cinéfilo leitor. Posto agora um texto do grande amigo, escritor e professor Carlos Henrique (Caíca), publicado no Jornal Apologia em setembro de 2007.

Já que estamos às vésperas de ganhar novas salas de cinema na cidade no Shopping Boulevard, cabe aqui esta reflexão do amigo.

A arte de (des) servir


por Carlos Henrique

Hoje não acordei no meio de um sonho, por isso apenas pela manhã sentei e fiquei pensando, pensando... em como escrever um texto para o caderno de cultura de um jornal da cidade de São Gonçalo, mais precisamente um que fale de cinema. Porra, como falar de cinema numa cidade de mais de um milhão de habitantes que praticamente não possuí cinemas?

Interessante indagação, não acham? E é por ser assim tão interessante
que essa mesma questão deveria estar sendo discutida, de nada adianta escrever isso aqui e depois ninguém mais pensar sobre o caso. Por conta disso vamos refletir, olhar no espelho da consciência e deixar que se re-flita sobre os problemas culturais que assolam nossa pobre, suja e carente cidade. Pensei, assim que acordei, em sentar e produzir algo que falasse sobre o último bom filme que assisti (O Cheiro do Ralo, Brasil 2007, Heitor Dhalia), mas esse é um filme que tive que me deslocar até Niterói para assistir, dessa forma estaria sendo até malvado ao indicar às pessoas uma película com acesso mais restrito.

O que fazer então, digamme?! Levanto e preparo um café, retorno ao computador e com uma puta dor de dúvida decido por não falar sobre filmes, mas sim sobre a dificuldade que encontramos para assistir filmes em nossa terra sem palmeiras onde não cantam sabiás. Sabem aquela caixa grande e feia que fica às margens de nossa Praia das Pedrihas? É lá o único lugar em que podemos ir se quisermos ver um filme. Mas, quais os longas que se exibem nessa caixa de sonhos que apenas ilude os pobres (e bota pobres nisso!) dos consumidores gonçalenses? Outra boa pergunta, não acham?

Se um problema é ter acesso às películas, outro, também tão crítico, é a quais películas podemos ter acesso. No fantástico mundo do mercado capitalista escolher é um verbo que não se conjuga. Não escolhemos mais, tiraram esse direito de nós, somos escolhidos, é a mercadoria quem compra seu consumidor, o fetiche virou contra o feticheiro (pobre do Marx...). A relação de oferta e procura acabou, escorreu pelo ralo (que fede a bosta e lucro!). E agora José, Fabiano, Sinhá Vitória, Bentinho, Capitu, Iracema, pobres de nós personagens desse teatro do absurdo que é o mundo do lucro? Que atire a primeira pedra aquele que nunca quis ver um filme que a caixa de falsos sonhos não oferecia em suas salas! Vai lá, pode atirar!
Você jamais verá esse diálogo do Heitor Dhalia nas telonas da Freguesia

O café esfriou, acendo um cigarro e fico olhando a fina fumaça azul que sobe, sobe, sobe fazendo danças no ar, no vazio, no espaço sem significados e significações do tempo, tentando (pobre de mim!) encontrar argumentos, respostas, perguntas que possam fazer com que você (é, você mesmo que me lê!) sinta agora a mesma indignação que eu, a mesma dor, o mesmo desamparo frente aos descaminhos que se abrem a nossa frente. Aí me pergunto pra que serve essa porra de cinema? Por que tenho que assistir filmes que querem que eu assista e não aqueles que quero? Cinema é arte? Beleza, então me diga pra que serve a arte se tenho fome, se não tenho trabalho, se não tenho hospitais, nem escolas, ruas asfaltadas etc?Pra nada.

A arte não serve pra nada, por isso mesmo ela é útil, necessária pra alimentar nossa fome de indagações, pra preencher nosso tempo ocioso (pelo direito ao ócio e à preguiça!!!), pra curar as dores que afligem nosso eu (é, esse eu aí que é você, que pensa e sente como qualquer um), pra educar nossa sensibilidade (e isso não é papo de veado, ser sensível é ser humano), pra construir os caminhos do nosso pensar/refletir (quanto mais sei menos me enganam, pense nisso quando for votar). Enfim, é por seu des-servir que a arte  mais nos serve, afinal, pra que serve viver?

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