quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE

Juliette pôs os pés fora de sua humilde casinha à Rua das Flores. Era manhã cedo de mais um dia de trabalho num escritório de quinta da cidade. Com um suspiro de desagrado, parou à saída do portão enferrujado para fechá-lo e finalmente ir para a labuta obrigatória. Lépida, deixou a calçada de cimento liso e rachado não sem antes tropeçar no traiçoeiro meio-fio que fazia-lha o remate. Pronto! Soltara o primeiro palavrão do dia, embora o fizesse em desabafo. Não era a primeira vez que tal coisa embaraço trazia-lhe - bem o sabia ali. Desta feita, maior o estorvo. A travanca inesperada pareceu-lhe, a bem da verdade, um existencial vaticínio.

Refeito o equilíbrio do corpo, corre baixo os olhos que dariam à alma coisa bem pior portanto: a sola desgarrara-se do sapato. Ah! subiu-lhe à cabeça o sangue da raiva e do desespero. Em seguida - coitadinha - a dor pujante do abatimento moral. Era-lhe o calçado o único que não trazia-lhe vergonha nas andanças dos dias úteis.

Já entregue ao fato que a devorava os ossos e a deixava miúda e impotente, senta-se com a saia azul tergal à beira da rua de piso em pedra. Sem norte à frente, entrega, irreversivelmente, as pontas. E chora, baixinho, de cabeça baixa, antes mesmo o sol despontar-se no horizonte.

À vista primeira, parece a ti terrível acaso a pobre moça. Ei-lo que sim. Estás certo e digo: coisa assim boba do dia a dia ulula tragédia de sempre. Algo fê-la a grande dor da ruazinha de lá. Coisa maior que fatiga e cutuca a queda hedionda de alguém. Juliette, mirada pela literatura que a assiste, mesmo dirá a mim, porque ainda não sei-lo. Caso tão assim-assim delicado lembra-nos coisas de monta à vida sem pestanejo de dúvida. É deveras certo a identidade de quem sofre, ama e etecéteras - vejo que sabes. Impressionaria, por sua vez, a natureza ter feito corpo de homem e mulher desajeitado à perícia se não fosse o propósito. Ah, este propósito!

(...)

Um comentário:

  1. Meu amigo, já conhecia seu lado polêmico e admiro sua luta, sua força e coragem de não se omitir e nem se calar diante da indignação. Você tem um espírito revolucionário e mesmo tropeçando em pedras, pisando em espinhos você não desiste, não se faz de vítima da vida e continua seguindo em frente. Apenas - até agora - não conhecia seu lado autoral. Estou encantada, pelo menos com a primeira lauda. Quantas "Juliettes" não existem, não só no Porto Novo, mas em todo Brasil?
    Parabéns Hélcio!
    Beijos doces e abraços culturistas!!

    ResponderExcluir