terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA VIII

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Ele já sabia ser um ilegítimo Ferro Lemos desde a briga de braço com o irmão dito postiço; este, aí sim, Ferro Lemos legítimo. Mesmo antes, sua mente inventiva já dera sinais de sagacidade. Próximo ao seu oitavo aniversário criou-se um germe de dúvida em sua cabecinha, de quem ele era ali naquela família. Um dos seus irmãos também faria a mesma idade - exatamente oito anos - apenas três meses após o seu próprio. O vivo garoto andava a observar toda sorte de bicho emprenhado; o fascinava as tetas grandes, o bucho crescido e os seus diferentes tempos de gestação. Como a aritmética jazia no saber para frente, contava o tempo pelas estações. Ele se intrigava sobremaneira com as galinhas; mas só com as galinhas. Sabia existir o tempo certinho das frutas, dos bezerros, dos cachorros e das gentes iguais a ele. A estas, contava três estações, nunca mais nem muito menos que isso. Como que diabos o seu irmão nascera apenas depois de uma mísera estação? Será por isso ser ele tão especial, ganhador fátuo de tantos e mais presentes e festas?

Mistério até o dia da primeira e grande revelação de sua vida pequena e por demais difusa. Não sabia de nada dessas coisas de sangue, de diferenças de gostar, do afeto. Passava longe dele este tipo de corrupção humana. Havia era a brincadeira de corda e engenho, o balanço do quintal e a atenção de dona Teresa, feito mucama mameluca da família; sua protetora. É, J. Carlos passava a noite em seu quarto miúdo de empregados, sendo, por vezes, confundido pela gente de fora que o achava, ele próprio, um agregado da casa. Idêntico à condição jurídica dos que nada tem. Mas não importava, não: compensava o cafuné...

_ Juliette, como está a situação entre os seus? - perguntou Mirandinha, já sabendo da resposta.
_ Uma merda! - respondeu assim a menina, o que fê-la ouvir, imediatamente, uma reprimenda da velha:
_ Olha, estou intimando-a a conversar comigo em hora mais apropriada. Vejo que necessitas de uma boa e proveitosa conversa - disse, mirando-a nos olhos. - Pode ser amanhã pela manhã? Prepararei um delicioso almoço pra gente, que tal? Agora, devo saber quanto calça.

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA VII

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Porém, num final de tarde, ouve-se uma confissão inesperada e translúcida daquele homem: - Eu fui o sujeito que mandou sua mãe e seu pai pro outro mundo - disse, inacreditavelmente calmo, enrolando o seu cigarro de palha. Os dois estavam de pé a caminho de um sitiozinho nos arredores de João Pessoa, de propriedade da família, onde buscavam, uma vez por semana, frutas e hortaliças para abastecer a casa. - Você era pra morrer junto deles - soltou, sem perceber que já falava sozinho pela rua de barro úmido. J. Carlos parara de andar ao seu lado; e ficara, no meio da estrada, perplexo e confuso, fazendo-se ausente daquele diálogo macabro.

J. Carlos não compreende, mesmo depois de tantos anos, aquela atitude do jagunço Quinzinho. Certo o assassínio deste homem duas semanas após a incongruente declaração. Assassinato de emboscada, quatro punhaladas fatais em uma casa de moças desclassificadas de João Pessoa. J. Carlos somente lembrara do sujeito ainda mais sinistro por aqueles dias, ainda mais quieto, a olhá-lo de banda, querendo com ele alguma coisa, dizer algo. Não deu, por sua vez, a devida importância àquele jeito soturno, até porque essas coisas são meras especulações a posteriori... e a coisa maluca: a inocente caminhada a pegar frutinhas no pomar deu em quê. Os quês de vários porquês levaram J. Carlos à Marinha de Guerra do Brasil. Poderia ter escolhido a Legião Estrangeira como desterro, mas mesmo no deserto haveria de fincar raízes, o que seria contraproducente à sua história que, quando é teimosa, transforma-se em sina.

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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA VI

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Ora, mas quem precipitou-se foi eu. Devo puxar a linha deste carretel com discernimento para não dá-la nós. Que seja o último!

Como disse, o homem nascera em algum lugar, chegando à família Ferro Lemos ainda de colo. Um sujeito sinistro, de alcunha Quinzinho, tratou de entregá-lo à mãe oportuna na cidade de João Pessoa, em sua parte mais abastada. Este episódio teima em ser deveras tenebroso à cabeça do infeliz, feito fantasma que assombra em horas de tutela. E tal espectro materializou-se por obra deste mesmo sinistro sujeito, em um dia quente qualquer do nordeste deste ponto do universo que rima com o mais vil palavrão.

Os anos deram à família Ferro Lemos prestígio e terras naquelas bandas da Paraíba e alhures. O controle dos seus negócios e os investimentos eram feitos com mão de ferro, foice, facão e espingarda; a faceta original do capitalismo brasileiro. O cancioneiro estava por fazer Asa Branca, era latente como um escândalo. Os conchavos e os acordos entre os iguais localizava-os na civilização, mas de modo algum pode-se dizer prática dominante daquelas cercanias. As birras e os negócios pendentes eram resolvidos à bala e sangue, o braço político usual dos coronéis e senhorios da tradição patriarcal conservada e reformada. Sofria menos quem tinha mais, e, o inverso, era a tilintante crueldade em forma pura, de uma atroz infalibilidade.

Quinzinho era um sujeito sinistro. Precisava sê-lo. Não sei se daria a ti descrição fidedigna da sua obliquidade. Tinha na sua esquisitice algo de etéreo e transcendente. A sua função neste mundo era de uma predeterminação quase litúrgica. A magreza do sujeito servia-lhe como testemunho da secura de sua alma. Os olhos fundos e sua testa protuberante faziam-lho estranho contraste com aquele quase-corpo. Mas J. Carlos não terminaria aqui a sua descrição: os gestos do sujeito eram de uma economia que tornavam explícito o seu talento moco. Quinzinho era o filho torto daquela Paraíba, mas o serviçal perfeito da família Ferro Lemos. Não havia em Quinzinho moralidade ou imoralidade, culpa - nada! Não em sua cabeça, nos seus atos. Simplesmente ele eliminara tais conceitos e complexidades. Era de uma leveza insuportável. Falava pouco, jamais repetia o já pronunciado; a voz do sujeito era para si próprio uma anti-inflexão.

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA V

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_ É com tudo e com todos. Sabe, as coisas comigo dão tão errado, que duvido realmente existir - Depois de uma pesada, dramática e terrível pausa, continuou: Uma vez li - não sei onde - que tudo que existe é, ao mesmo tempo, potência e resistência porque é força, e, no entanto, cá estou em sua casa bebendo esta água doce - filosofou a moça com a reflexão dos derrotados.

Juliette sempre soube da dureza da vida; agora, o parênteses necessário: creio que o leitor possa ter uma compreensão coberta pela áurea da pieguice a respeito de concepção e afirmação consumidas pela desesperança generalizada. Porém, diria ser a sua vida, em particular, um arroio de mequetrefe. Para ela, os seus impedimentos eram rudes e intranscendentes. A única coisa que tinha em seu favor era o intelecto, talvez -faça ver! - por herança de seu pai e de sua mãe. Peço licença, portanto, para contar-lhe um pouco da história dos seus ascendentes num brevíssimo prólogo.

Os dois conheceram-se lá pelo fim da década de ouro do Brasil. Sim, nos anos cinquenta do passado século XX. Ele, cabo da Marinha de Guerra, e ela, filha de um funcionário público de pequeno escalão do Ministério do Planejamento. Um pouco de atenção à história brasileira nos daria o cenário perfeito ao encontro do casal. Por hora, comecemos a genealogia.

O homem, pai da moça, fora batizado João Carlos; João Carlos de Ferro Lemos. Nascera em 1939 numa cidade do interior do grande Estado do Sertão. Digo numa cidade, porque mesmo ele a ignora. Sem o querer, mergulharia de cabeça no turbilhão de eventos sucessivos que culminariam no seu mais completo esquecimento como pessoa à ruazinha das Flores; em uma pseudo-cidade de subúrbio do Rio de Janeiro, ironicamente afeita à sua condição. Parou ali como sempre vivera, tal como folha vadia ao sabor dos ventos, que se desgarra, murcha e finalmente seca para desintegrar-se. Talvez para ele a sua própria vida tenha sido uma enorme pilhéria. Ainda não cansara das perguntas que fazia a si mesmo - por sua vez -, mas há muito desistira de lutar no front da vida. Tombara em meio ao combate pela existência neste mundo deveras hostil. Juliette daria, então, continuidade à causa perdida? Bem veja que é cedo para tirarmos qualquer conclusão, uma antecipação que seja é precipitada.

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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA IV

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Outros que saíam de suas casas para o trabalho tiveram as atenções voltadas para aquele trecho de rua. Os que iam à frente seguiram os seus destinos com chances sérias de terem mau jeito no pescoço. Os que haviam de passar, diminuíam os passos. Os chegados a uma ou outra paravam para acudir. - Vão, por favor, vão! - dizia a velha, percebendo a antropofagia da pueril curiosidade transeunte. De mais, ela mesma queria desvendar o mistério. Para tanto, a pegou pelo braço perguntando em sussurro:

_ Queres vir a minha casa?
_ Qual o quê, dona Mirandinha! Vou entrar e descansar um pouco - disse a moça, desvencilhando-se da velha em direção à entrada de seu esconderijo.
_ Ora, mas não vais mesmo! - reagiu, pegando em seu braço; e, nesse gesto, desvelando certos ares de convicção, imperativa. - Venha comigo, e darei a ti café com leite quente e alguns biscoitos... não! água com açúcar se quiseres. Vejo que estás mais nervosa que lesa...

Esta última frase, junto ao sorriso da velha, cativaram-na, minando sua resistência. Lá entraram enfim.

E sentaram-se as duas à mesinha de madeira logo à entrada da cozinha. Bastou uma piscadela para surgir, entre a soleira da porta de mesmo cômodo seu Clodomiro, marido de Mirandinha. A velha logo adiantou-se: - Não foi nada! - despachando o velho desleixado e modorrento.

_ E então; conta-me o que houve? dando-lha água doce.
_ Este sapa... - Juliette não conseguiu completar a frase, interrompida por Mirandinha em corte:
_ Eu já sei que estes sapatos eram os únicos que tinhas para usar; claro está. É fácil de resolver, não se preocupe. Mas resolver o problema do calçado deixará outro em aberto, não é verdade?
_ Sim - seco.
_ Pois me conte. É algo com seu pai e sua mãe?

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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA III

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Foi a velha claudicante a vítima eventual de sua dor. Juliette respirou fundo, contou até dez, desejou mesmo flagelar-se; tudo! para não descontar em dona Mirandinha tantos impropérios. A velha, por sua vez, fazia bem não ser com ela. Os muitos anos vividos deram-na ouvidos pacientes e compreensivos para com a juventude - especialmente com Juliette, por ela muito querida. Devo explicar que tal afeição não era em si gratuita. A moça fora morar à Rua das Flores ainda recém-nascida, enrolada com a manta que seria do seu irmão, caso este não sucumbisse aos caprichos do destino. A mãe e o pai de Juliette - que serão apresentados em boa hora - decidiram mudar-se depois do inesperado; contudo, pregam-lhes outra peça o destino quando mal superaram o terrível infanticídio: souberam de outra gravidez, esta que traria ao mundo a sua única filha Juliette.

Darei ao leitor amigo os detalhes desta história, o que nos ajudará sobremaneira entender os descaminhos da pobre moça. Por hora, acompanhemos o interessante desdobramento do diálogo interrompido pelo parágrafo acima obscuro:

_ Ora! calce outro e vá - disse a velha, certa da solução.
_ Eu não os tenho.
_ Eu não os tenho o quê? - pergunta a velha incrédula.
_ O sapato, o sapato! Eu não tenho sapato; ouviu?!! - Juliette levanta-se de súbito a girar e girar - loucamente -, fora de si:

_ Eu não tenho sapato! Eu não tenho sapato! - Gargalha de bazófia acompanha o triste saldo patético da cena as cinco e pouquinho da manhã de sexta-feira.

Eu não tenho sapatos. Eis o embuste que confunde o leitor desatento.

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sábado, 14 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE - LAUDA II

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Ainda lá estava a moça na solidão do desespero e sentimentos ruins há muito habituais à cabeça. Arrastou-se, porém, à borda do meio-fio a sentar-se. Ficou em tão funesta solidão até o ranger de uma portinhola à sua frente. Era dona Mirandinha mimando a insônia. Tão logo a viu chamou-a sem perceber-lhe o aviltamento da cena:

_ Juju, é você? É você Juju?!!

Dona Mirandinha já era vó há bastante tempo, e a artrite a perseguia. Nada que lhe tirasse a ternura. Absolutamente! Chamava-se Mirândola, mas a vizinhança tratou de alcunhá-la dona Mirandinha mesmo. Viste acima que chamara Juliette por duas vezes, e depois de um estranho silêncio perguntou em baixo tom, curiosa:

_ Que fazes aí minha filha?
_ Não é nada - respondeu sem olhá-la nos olhos; enxugando o que restava de lágrima na bochecha pálida. - Eu só estou aqui... - Não se aguentou; chorou de soluçar em tremedeira; gemia como criança pequena.

A mulher atravessa a rua do seu jeito, indo ao seu encontro. O franzir do rosto de Mirandinha - além de enrugá-lo - carregava pesada curiosidade: "O que essa menina aprontou dessa vez? Ora, mas tão cedo! Não, não... As luzes da sua casa estão apagadas; estão todos dormindo por certo". Pisava nos paralelepípedos indagando-se a fim de adivinhar a causa do inusitado em pleno alvorecer.

_ Aconteceu alguma coisa; fale comigo Juliette...
_ Aconteceu, sim! Eu não vou trabalhar hoje! Tudo por causa de uma merda de sapato!

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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O SAPATO DE JULIETTE

Juliette pôs os pés fora de sua humilde casinha à Rua das Flores. Era manhã cedo de mais um dia de trabalho num escritório de quinta da cidade. Com um suspiro de desagrado, parou à saída do portão enferrujado para fechá-lo e finalmente ir para a labuta obrigatória. Lépida, deixou a calçada de cimento liso e rachado não sem antes tropeçar no traiçoeiro meio-fio que fazia-lha o remate. Pronto! Soltara o primeiro palavrão do dia, embora o fizesse em desabafo. Não era a primeira vez que tal coisa embaraço trazia-lhe - bem o sabia ali. Desta feita, maior o estorvo. A travanca inesperada pareceu-lhe, a bem da verdade, um existencial vaticínio.

Refeito o equilíbrio do corpo, corre baixo os olhos que dariam à alma coisa bem pior portanto: a sola desgarrara-se do sapato. Ah! subiu-lhe à cabeça o sangue da raiva e do desespero. Em seguida - coitadinha - a dor pujante do abatimento moral. Era-lhe o calçado o único que não trazia-lhe vergonha nas andanças dos dias úteis.

Já entregue ao fato que a devorava os ossos e a deixava miúda e impotente, senta-se com a saia azul tergal à beira da rua de piso em pedra. Sem norte à frente, entrega, irreversivelmente, as pontas. E chora, baixinho, de cabeça baixa, antes mesmo o sol despontar-se no horizonte.

À vista primeira, parece a ti terrível acaso a pobre moça. Ei-lo que sim. Estás certo e digo: coisa assim boba do dia a dia ulula tragédia de sempre. Algo fê-la a grande dor da ruazinha de lá. Coisa maior que fatiga e cutuca a queda hedionda de alguém. Juliette, mirada pela literatura que a assiste, mesmo dirá a mim, porque ainda não sei-lo. Caso tão assim-assim delicado lembra-nos coisas de monta à vida sem pestanejo de dúvida. É deveras certo a identidade de quem sofre, ama e etecéteras - vejo que sabes. Impressionaria, por sua vez, a natureza ter feito corpo de homem e mulher desajeitado à perícia se não fosse o propósito. Ah, este propósito!

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FELIZ 2012...

Amigos leitores. Sei que estiveram ansiosos por notícias deste escriba. 

Pois bem. 

Tenho dois desafios. Um, é digitar um projeto de romance que jazia em um canto qualquer desta loucura de vida. E, o outro, é ir com a minha Kris Bella para a aprazível cidade de Assú, no Rio Grande do Norte, para, enfim, dar cabo desta missão.

Queria a ajuda e observação dos amigos, por favor.

Começarei em outro post. 

E vamo que vamo!